Caio Martins 80 anos. Um estádio como presídio no coração de Icaraí

Completando oito décadas nesta terça (20), estádio tornou-se prisão logo nos primeiros dias do regime militar, em 1964

Quem passa pela esquina da Rua Presidente Backer com a Avenida Roberto Silveira, em Icaraí, encontra o Complexo Esportivo Caio Martins em uma situação paradoxal. Se as instalações da piscina e da quadra se encontram em bom estado, tendo sido reformadas em 2019, a situação do estádio é de abandono total, com alojamentos sucateados, infiltrações nas paredes e nos tetos e outros problemas de infraestrutura. Mas os atuais problemas em nada se comparam ao período em que o local se tornou prisão já nos primeiros dias do regime militar, em 1964.

Assim que as Forças Armadas tomaram o poder, em 1º de abril do mesmo ano, houve um início de medidas arbitrárias pela Polícia Militar e também pelo Exército, onde muitos foram presos com a acusação de serem subversivos, mesmo quem não tinha nenhum tipo de vínculo político. Em Niterói não foi diferente, e o complexo do Caio Martins era o destino dos presos dessa época.

De acordo com a edição do jornal A Tribuna de 20 de abril, o então estado do Rio de Janeiro, que tinha Niterói como capital, tinha 600 presos ao todo. O então chefe de polícia da ocasião, Coronel Hugo Sá Campelo, disse que eles eram divididos entre a Polícia Militar, o Ginásio Caio Martins e o Centro de Armamento da Marinha, “além dos que aguardam interrogatório na própria Secretaria de Segurança Pública”.

“Os presos estão tendo assistência de todos os médicos do Estado, tomam banhos diários e recebem uma alimentação sadia”, destacou o chefe de polícia. Entretanto, o que acontecia de fato era bem diferente.

Faixa estendida durante protesto relembrando o período em que o local foi presídio. Foto: Reprodução da internet

Presos de diversas cidades do estado

Segundo o artigo “Memória e Verdade: a ditadura civil-militar na cidade de Niterói”, apresentado no XI Encontro Regional Sudeste de História Oral, ocorrido em julho de 2015, o número de presos no local foi superior a mil, de acordo com diversos depoimentos. Apesar disso, a pesquisa documental realizada no fundo Polícia Política, do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) – onde encontram-se, hoje, a documentação produzida e arquivada dos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS) do Estado – consta que, no mínimo, 339 foram presos.

A origem deles não era apenas Niterói e São Gonçalo. Entre os presos, tinha gente de Cabo Frio, Cachoeiras de Macacu, Duque de Caxias, Cantagalo, Itaboraí, Itaperuna, Magé, Nova Friburgo, São João de Meriti, Silva Jardim, Rio Bonito, Teresópolis, Três Rios, Trajano de Morais, entre outros.

Além dos municípios, a ocupação profissional deles também era variada, pois havia lavradores, bancários, ferroviários, professores e metalúrgicos. Entre eles estava o advogado Manoel Martins, falecido em 2016 aos 92 anos de idade. Ele foi um dos que narrou os horrores que sofreu ao jornalista Anderson Madeira de Carvalho, autor do livro “Niterói na Época da Ditadura”, lançado em 2019.

O escritor conta que ficou “impressionado” com o relato do advogado, que foi o ponto de partida para ele fazer a obra. No livro, o advogado traz um relato sobre a proibição ao banho de sol. Quando os militares permitiram que os presos pudessem ver a luz do dia, muitos rolaram, literalmente, no gramado.

“O ginásio foi transformado em um campo de concentração, onde havia maus-tratos aos presos. Não tínhamos direito a banho de sol nem caminhar nem receber visitas. Apenas no final. Nos serviam uma sopa azeda que era suspeita de estar envenenada. Uma das imagens mais marcantes foi o dia em que abriram os portões do gramado para tomarmos sol. A cena daquelas pessoas rolando na grama nunca saiu de minha cabeça”, contou Martins ao jornalista.

Filha do advogado, Lygia Martins, confirmou que o período foi muito difícil. E ela explicou que os militares praticavam constantemente tortura psicológica não apenas com os presos, mas principalmente com os familiares deles.

“Quando meu pai foi pra o Caio Martins, ele já estava preso no quartel da PM ao lado da Rodoviária de Niterói, uns 2 meses antes. No Caio Martins todos eram vigiados pelo Exército. A tortura ali era mais psicológica.  Lembro-me das visitas, um soldado de metralhadora ficava entre o preso é sua família.  Eu tinha 15 anos, chorava apavorada”, recorda-se Lygia.

Manoel Martins segura cartaz onde conta um pouco da história de vida. Foto: Reprodução/Twitter

Depoimento à Comissão da Verdade recorda tortura física

Mas a tortura física também era rotina na prisão. Benedito Joaquim dos Santos, presidente, em 1964, Sindicato dos Operários Navais do estado, contou em depoimento reservado à Comissão da Verdade em Niterói, em 2013, que estava numa reunião na sede do sindicato quando soube que os militares tomaram o poder.

A sede do sindicato é invadida imediatamente e o aviso é que os membros deveriam procurar um lugar seguro para se esconder. Apenas seis dias após o regime ter início, ele foi preso durante uma madrugada e levado para a sede do DOPS no estado do Rio, onde hoje se encontra a 76ª delegacia de polícia, na Avenida Ernani do Amaral Peixoto, no Centro de Niterói.

“Nós todos fomos presos no sítio. Presos pelo DOPS. De lá fomos transferidos para a sede do DOPS, que se situava na Avenida Amaral Peixoto, e na medida que nós íamos passando para a cela, um cubículo, o pau comeu. Fomos barbaramente espancados”, contou Benedito.

Sanduíches por cima do muro

Anderson recorda de um relato que recebeu que o deixou muito mexido. Ele entrevistou para o livro Colombo Vieira de Souza, que em 1970 tornou-se conhecido por tentar sequestrar um avião Caravelle no Galeão. Adolescente em 1964, ele jogava comida pelo muro do Caio Martins e fugia dos policiais que o perseguiam.

“Nessa época, o Colombo Vieira de Souza era garoto. Ele passava de bicicleta ao lado do Caio Martins e jogava sanduíches para os presos. Ainda de acordo com o que ele me falou, os soldados corriam atrás dele e dos colegas montados a cavalo”, recorda o escritor.

Volta ao Caio Martins, mas como torcedor

Passados 25 anos após ser preso no estádio, Manoel Martins voltou ao local como torcedor para assistir a uma partida entre Fluminense e America pelo Campeonato Carioca de 1989. Lygia recorda que o pai resolveu ir para acompanhar o neto, tricolor. Anos depois, ele voltou ao local para uma reportagem. Em ambas as ocasiões, ela descreve o quanto o advogado ficava mexido em ir no Caio Martins, que fazia questão de marcar presença com o intuito de não deixar essa triste parte da história cair no esquecimento.

“Em 1989, o Fluminense jogou contra o América, no Caio Martins. Meu pai torcia para o América. Meu filho, com 7 anos na ocasião, era torcedor do Fluminense. Foi aí que meu pai pisou novamente no Caio Martins, 25 anos depois, para levar meu filho. Ele ainda ficou na torcida do Fluminense. Depois foi mais uma vez, em 2012, para uma entrevista a uma revista. Era bem dolorido, mas ele tinha consciência de que essa história não podia ser esquecida”, recorda Lygia.

Gabriel Gontijo | A Tribuna

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